sexta-feira, 8 de março de 2019

Dia internacional da mulher – reflexões sobre princípio da igualdade entre os cônjuges




Edgar Yuji Ieiri (08/03/2019)
Trechos extraídos da monografia de conclusão do curso de pós-graduação em Direito de Família e das Sucessões - EPD

PAULO LÔBO analisa que o Direito de Família evoluiu com a Constituição de 1988, mas pondera que a sociedade brasileira, ainda no século XXI, conserva amarras e “resistências culturais ancoradas nos resíduos do modelo patriarcal” e que ainda há discriminação contra a mulher, por persistir resquícios do sistema patriarcal que gera desequilíbrio nas relações de poder entre a mulher e o homem.

Para o autor, os brasileiros, influenciados por valores religiosos e culturais, ainda conservam a concepção tradicional de família e cita, como exemplo, a tendência do Judiciário de preferir a mãe ao pai para guarda dos filhos (até o advento da Lei 13.058/2014), por existir, inconscientemente, um senso comum de que é papel da mulher as atribuições domésticas ou de dona de casa e dever do homem prover a família se ativando no mercado trabalho. [1]

Contudo, para MARIA BERENICE DIAS, na realidade social atual ainda subsiste o viés patriarcal. “O patrimônio ainda está nas mãos dos homens. Os filhos ficam sob a guarda materna e o pai é o devedor de alimentos”. É a mulher que tem que cobrar os alimentos, não sendo raro sofrer resistência dos filhos para não prender o pai, mesmo que ele contribua com o mínimo necessário.

De fato, a igualdade jurídica ainda não foi capaz de moldar o comportamento social. Isso se deve, dentre outros fatores, à lenta evolução legislativa sobre o assunto e a manutenção de resíduos de desigualdade superados apenas com a Constituição Federal de 1988.

Nas Ordenações Filipinas que vigoraram no Brasil de 1603 a 1916, a mulher necessitava de permanente tutela, pois, para época, tinha “fraqueza de entendimento”. Ao marido é permitido castigar sua companheira e mesmo matar em caso de adultério. Além disso, o marido poderia requerer diligências policiais para fazer valer sua autoridade e obrigar a mulher a viver com ele na mesma habitação.

O Código Civil de 1916 também oprimiu a mulher, na medida em que as mulheres casadas, enquanto subsistia a sociedade conjugal, eram consideradas relativamente incapazes, juntamente com os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos, os pródigos e os silvícolas (Artigo 6º). Em suma, a mulher não poderia, sem a autorização do marido, litigar em juízo cível ou criminal, ser tutora ou curadora ou aceitar mandato, salvo casos específicos em lei.

“A mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar precisava da autorização do marido”. A família ainda era identificada pelo nome do marido e a mulher era obrigada a adotá-lo. Não existia o divórcio, apenas o “desquite” que não dissolvia o casamento. [2]

Em 1962, com o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), a sociedade superou parcialmente o tratamento assimétrico entre homem e mulher, abolindo a incapacidade feminina. Do Código Civil de 1916 foram revogadas diversas normas de desigualdade conjugal, restando traços de patriarcalismo como a chefia da sociedade conjugal e o pátrio poder exercido pelo marido com a “colaboração da mulher”.

O chamado Estatuto da Mulher Casada devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal. Mesmo tendo sido deixado para a mulher a guarda dos filhos menores, sua posição ainda era subalterna. Foi dispensada a necessidade da autorização marital para o trabalho e instituído o que se chamou de bens reservados, que se constituía do patrimônio adquirido pela esposa com o produto de seu trabalho.  Esses bens não respondiam pelas dívidas do marido, ainda que presumivelmente contraídas em benefício da família. [3]

A Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) introduziu o divórcio no Brasil e possibilitou aos cônjuges, de forma igualitária, de colocarem fim ao matrimônio e constituírem uma nova família. A lei ainda transformou em faculdade a obrigação da mulher de acrescentar o nome da família do marido.

A nova lei, ao invés de regular o divórcio, limitou-se a substituir a palavra “desquite” pela expressão “separação judicial”, mantendo as mesmas exigências e limitações à sua concessão. Trouxe, no entanto, alguns avanços em relação à mulher. Tornou facultativa a adoção do patronímico do marido. Em nome da equidade estendeu ao marido o direito de pedir alimentos, que antes só eram assegurados à mulher “honesta e pobre”. Outra alteração significativa foi a mudança do regime legal de bens. No silêncio dos nubentes ao invés da comunhão universal, passou a vigorar o regime da comunhão parcial de bens. [4]

A Constituição de 1988 extinguiu os resquícios do poder marital, ainda que de forma tácita.

Ainda que o princípio da igualdade já viesse consagrado desde a Constituição Federal de 1937, além da igualdade de todos perante a lei (art. 5ª), pela primeira vez foi enfatizada a igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações (inc. I do art. 5º). De forma até repetitiva é afirmado que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (§ 5º do art. 226). Mas a Constituição foi além. Já no preâmbulo assegura o direito à igualdade e estabelece como objetivo fundamental do Estado promover o bem de todos, sem preconceito de sexo (inc. IV do art. 2º). [5]

Como se nota, a legislação foi acompanhando vagarosamente a trajetória de emancipação da mulher.

O princípio da igualdade entre os gêneros, entre os filhos de qualquer origem e entre as entidades familiares foi alçado pela Constituição Federal ao nível de direito fundamental e provocou profunda transformação no Direito de Família, havendo a quebra de princípios jurídicos sustentados pela definição da chamada “família tradicional”. [6]

O que separava o certo do errado e o que distinguia o lícito do ilícito era o conceito social e religioso oriundo dos costumes e das tradições de “família legítima”. E a legitimidade da família era atingida exclusivamente pelo matrimônio. Por essa razão, havia distinção no tratamento entre filhos legítimos, concebidos dentro do casamento, e filhos ilegítimos.

A Constituição Federal de 1988 pôs fim às desigualdades, equiparando os cônjuges entre si, os companheiros entre si, os cônjuges aos companheiros, os filhos de qualquer origem, abolindo a adoção de adjetivos estigmatizantes.

O parágrafo quinto do artigo 226 da Constituição diz que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”, o que significou, ao menos a nível legal, o fim da hierarquia familiar e a superioridade marital. A concepção de família tradicional foi substituída pelo ideal de sociedade conjugal, quando duas pessoas se unem com o ânimo de constituir família, com igualdade de direitos e obrigações.

A igualdade e seus consectários não podem apagar ou desconsiderar as diferenças naturais e culturais que há entre as pessoas e entidades. Homem e mulher são diferentes; pais e filhos são diferentes; criança e adulto ou idoso são diferentes; a família matrimonial, a união estável, a família monoparental e as demais entidades familiares são diferentes. Todavia, as diferenças não podem legitimar tratamento jurídico assimétrico ou desigual, no que concernir com a base comum dos direitos e deveres, ou com o núcleo intangível da dignidade de cada membro da família. Não há qualquer fundamentação jurídico-constitucional para distinção de direitos e deveres essenciais entre as entidades familiares, ou para sua hierarquização [...] (LÔBO, 2017, p. 60).

FLÁVIO TARTUCE lembra que o princípio da igualdade entre os cônjuges e companheiros está prevista no Código Civil (Artigo 1.511), e ainda cita como exemplos a possibilidade do marido ou companheiro pleitear alimentos da mulher ou companheira e também a possibilidade do homem utilizar o nome da mulher (artigo 1.565, parágrafo primeiro). [7]

Não se pode olvidar que a jurisprudência adaptou as decisões acerca da pensão alimentícia para ex-cônjuges em vista da gradativa inserção da mulher no mercado de trabalho e do atual contexto de empoderamento e emancipação feminina. A jurisprudência mais recente do STJ é no sentido de fixar a pensão alimentícia em favor da mulher em caráter excepcional e transitório, exceto quando um dos cônjuges não possua mais condições de reinserção no mercado de trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira (Jurisprudência em Teses do STJ, nº 14, Edição 65: Alimentos).

14) Os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ter caráter excepcional, transitório e devem ser fixados por prazo determinado, exceto quando um dos cônjuges não possua mais condições de reinserção no mercado do trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira.

Ainda sobre o Código Civil e fazendo críticas ao sistema atual, MARIA BERENICE DIAS afirma que o atual Código se olvidou sobre o fato da mulher ainda estar fora do mercado de trabalho mais qualificado, de ganhar menos que o homem no desempenho das mesmas funções e ter dupla jornada de trabalho.

Não foram regulamentadas as novas estruturas familiares. Deixou a lei de atentar que a Constituição Federal reconheceu as famílias monoparentais. Tal omissão prejudica o universo de 32% das famílias brasileiras que são chefiadas por mulheres [...] De outro lado, a falta de regulamentação da filiação socioafetiva, impede que sejam estabelecidos vínculos de filiação com quem exerce as funções parentais. Os exemplos são por demais frequentes. Completamente abandonados pelo pai, os filhos passam a ter estreita vinculação com o companheiro ou marido da mãe. O impedimento da adoção, sem o consentimento expresso do pai, a falta de previsão de concessão da guarda, são silêncios que não se justificam. Revelam a sacralização do vínculo familiar originário, ainda que desfeito, em detrimento do elo de afetividade que se estabeleceu. [8]

MARIA BERENICE DIAS recorda que o Brasil assinou compromisso na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, no ano de 1.995, no sentido de implantar ações afirmativas por meio de quotas, incentivos fiscais que busquem superar a desigualdade entre homens e mulheres.

A conclusão da ilustre autora é que a sociedade deve adotar mecanismos de promoção da igualdade de gênero, incorporar, nos textos legais, dispositivos de proteção à mulher por meio de incentivos no mercado de trabalho, por exemplo, e ações afirmativas para sanar situações de desigualdade de gênero. Atualmente o Brasil deve atentar não é à igualdade perante a lei (igualdade formal), mas o direito à igualdade real (ou substancial), mediante a redução das diferenças sociais, a fim de dar efetividade ao princípio da isonomia.[9]

Como bem assevera CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, o princípio da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição prega a redução das desigualdades, motivo pelo qual não basta que o Estado proíba diversas formas de discriminação ou se abstenha de discriminar. O Estado e a sociedade deverão atuar positivamente no sentido de reduzir as desigualdades, pois a mera vedação de condutas discriminatórias não é suficiente para realizar os objetivos fundamentais da República. [10]

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[1] LÔBO, Paulo: Direito civil: Famílias / Paulo Lôbo – 7ª edição – São Paulo: Saraiva, 2017
[2] DIAS, Maria Berenice, A mulher no Código Civil. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_726)18__a_mulher_no_codigo_civil.pdf [acesso em 03 de novembro de 2018]
[3] Idem
[4] Idem
[5] Idem
[6] LÔBO, Paulo: Direito civil: Famílias / Paulo Lôbo – 7ª edição – São Paulo: Saraiva, 2017
[7] TARTUCE, Flávio: Direito Civil, v. 5: Direito de Família / Flávio Tartuce – 12ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017
[8] DIAS, Maria Berenice, A mulher no Código Civil. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_726)18__a_mulher_no_codigo_civil.pdf [acesso em 03 de novembro de 2018]
[9] DIAS, Maria Berenice, Ações afirmativas: a solução para a desigualdade. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_748)3__acoes_afirmativas__a_solucao_para_a_desigualdade.pdf [acesso em 03 de novembro de 2018]
[10] ANJOS FILHO, Robério Nunes (Coord.), Direitos Humanos e Direitos Fundamentais – Diálogos Contemporâneos, Organizador Robério Nunes dos Anjos Filho, Editora Juspodivm, Salvador, BA, 2013, p. 132/133.