O
ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA
O estado de “calamidade pública” pode ser
conceituado como alguma situação fática excepcional e de grande gravidade, que
pode ameaçar a ordem pública e a paz social, e que para o seu enfrentamento
exige medidas extraordinárias e urgentes.[i]
Compete à União, planejar e promover a defesa
permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as
inundações (inciso XVIII, artigo 21 da Constituição Federal). E através do
Decreto 7.257/2010 houve a regulamentação sobre o reconhecimento de situação de
emergência e estado de calamidade pública, sobre as transferências de recursos
para ações de socorro, assistência às vítimas, restabelecimento de serviços
essenciais e reconstrução nas áreas atingidas por desastres.
Para os efeitos deste Decreto, considera-se estado de
calamidade pública a situação anormal, provocada por desastres, causando danos
e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de
resposta do poder público do ente atingido (art. 2, inciso IV).
Em 20 de março de 2020, o Congresso Nacional aprovou
e reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública devido ao surto de coronavírus
(Covid-19), com efeitos até 31 de dezembro de 2020.[ii]
E a partir daí surgiu a polêmica sobre a possibilidade de saque do FGTS pelo
trabalhador, no período de pandemia.
O FGTS
E AS HIPÓTESES PARA SAQUE
“O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS) é um direito individual do trabalhador, consistente no depósito bancário
periódico destinado a formar uma poupança para o trabalhador, que poderá ser
utilizada em determinadas hipóteses previstas em lei, como a demissão sem justa
causa por iniciativa do empregador, aquisição de moradia, quando portador de
determinadas doenças etc”.[iii]
A lei que regulamenta o fundo é a Lei n.
8.036/1990 e o art. 20 expõe de forma exemplificativa as hipóteses para o
levantamento e movimentação do FGTS pelo trabalhador.
As hipóteses de movimentação mais conhecidas
são:
I - despedida sem justa causa do empregado, rescisão
indireta do contrato, rescisão por culpa recíproca e/ou de força maior;
II - extinção total da empresa, fechamento de
quaisquer de seus estabelecimentos, filiais ou agências ou ainda falecimento do
empregador individual;
III – aposentadoria do trabalhador;
IV - falecimento do trabalhador, sendo o saldo
pago a seus dependentes, para esse fim habilitados perante a Previdência Social;
V - pagamento de parte das prestações
decorrentes de financiamento habitacional;
VI - liquidação ou amortização extraordinária
do saldo devedor de financiamento imobiliário;
VII – pagamento total ou parcial do preço de
aquisição de moradia própria, ou lote urbanizado;
VIII - quando o trabalhador permanecer três
anos ininterruptos fora do regime do FGTS;
IX - extinção normal do contrato a termo,
inclusive o dos trabalhadores temporários; [...]
XI - quando o trabalhador ou qualquer de seus
dependentes for acometido de neoplasia maligna; [...]
XIII - quando o trabalhador ou qualquer de seus
dependentes for portador do vírus HIV;
XIV -
quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes estiver em estágio
terminal, em razão de doença grave;
XV - quando o trabalhador tiver idade igual ou
superior a setenta anos;
XVI -
necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural,
conforme disposto em regulamento;
[...]
XVIII - quando o trabalhador com deficiência,
por prescrição, necessite adquirir órtese ou prótese para promoção de
acessibilidade e de inclusão social.
O
SAQUE DO FGTS POR DOENÇA GRAVE
Evidentemente que o trabalhador ou o dependente
do trabalhador que se encontrar gravemente doente pela Covid-19 poderá sacar o
FGTS com base no inciso XIV do artigo 20 da Lei do FGTS. Segundo o site da Caixa[iv], o trabalhador deverá
providenciar, além de documentos pessoais:
- Atestado médico contendo diagnóstico médico, em face dos sintomas e do histórico patológico que caracterize estágio terminal de vida, em razão de doença grave consignada no Código Internacional de Doenças - CID, que tenha acometido o titular da conta vinculada do FGTS ou seu dependente, assinatura e carimbo com o nome/CRM do médico que assiste o paciente, indicando expressamente que o paciente encontra-se em estágio terminal de vida;
- Documento hábil que comprove a relação de dependência, no caso de dependente do titular em estágio terminal de vida, em razão de doença grave;
- Atestado de óbito do dependente, caso este tenha vindo a falecer em consequência da moléstia, a partir da vigência da MP 2-164-40/2001 de 26/07/2001.
E se o trabalhador não estiver em estágio
terminal de vida? Seria possível o saque o FGTS na pandemia do coronavírus?
Por mais competente que o legislador brasileiro
possa ser, é impossível imaginar que todas as situações fáticas de penúria
financeira do trabalhador possam ter sido arroladas exaustivamente. Por essa
razão, o Judiciário vem propagando o entendimento de que é possível o saque do
FGTS mesmo nos casos não previstos no art. 20 da Lei 8.036/90, tendo em vista
que o rol de hipóteses ali apresentadas não
é taxativo.
É incoerente defender que apenas as hipóteses
expressamente previstas em lei autorizariam o saque do FGTS, pois nega os
valores defendidos e assegurados na Constituição e que implicitamente constam
da própria Lei 8.036/90, notadamente o direito à moradia, à saúde, à vida, à
dignidade humana e ao mínimo existencial.
Por isso, a jurisprudência já flexibilizou o
artigo 20 da Lei 8036 /90 quanto às doenças nele previstas, considerando que o
rol é apenas exemplificativo e não taxativo, de forma que outras doenças graves
e não terminais possam justificar o levantamento dos valores depositados.[v]
O
SAQUE DO FGTS POR NECESSIDADE PESSOAL DURANTE A PANDEMIA
A hipótese do inciso XVI é atualmente
regulamentada pelo Decreto 5.113/2004[vi] e prevê a possibilidade
do titular de conta vinculada de FGTS, durante o estado de calamidade pública, de
sacar os valores por motivo de necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade
decorram de desastre natural.
Ocorre
que o referido decreto restringiu as hipóteses de saque apenas para eventos da
natureza como vendavais, tempestades, enchentes, tornados, alagamentos,
inundações etc, e não previu uma pandemia tão grave como estamos vivendo
atualmente. É com base nesse decreto que a Caixa Econômica Federal
recusa administrativamente os pedidos de saque por epidemias ou pandemias, exatamente
por não estarem definidas como “desastres naturais”.
Recentemente foi editada a MP nº 946/2020, que
autoriza o saque de até R$ 1.045,00 de contas ativas e inativas do FGTS a
partir de 15 de junho de 2020, nos seguintes termos:
Art.
6º Fica disponível, para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da
Lei nº 8.036, de 1990, aos titulares de conta vinculada do FGTS, a partir de 15
de junho de 2020 e até 31 de dezembro de 2020, em razão do enfrentamento do
estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20
de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional
decorrente da pandemia de coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979,
de 6 de fevereiro de 2020, o saque de recursos até o limite de R$ 1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais) por
trabalhador.
Porém, sendo este valor insuficiente, nada
impede que o trabalhador busque o Poder Judiciário para que a juiz competente
encaminhe uma ordem de liberação integral dos valores contidos na sua conta
vinculada.
E SE O
VALOR DE R$1.045,00 NÃO FOR SUFICIENTE?
O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido
que se houver risco a dignidade da pessoa humana, justifica-se a movimentação
do saldo do FGTS fora das hipóteses descritas taxativamente no artigo 20 da Lei
8036/90.[vii]
A finalidade do FGTS
é de propiciar uma reserva de numerário ao trabalhador como uma garantia
financeira caso seja dispensado imotivadamente e em outras hipóteses previstas
na legislação específica, como nos casos de neoplasia maligna, HIV,
situações de emergência, estado de calamidade pública etc.
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço é
uma verdadeira poupança reservada para imprevistos e também um complemento ao
seguro-desemprego no caso da perda repentina da fonte de sustento do empregado. Logo, nos parece razoável permitir o saque do numerário no período de pandemia, por
necessidade pessoal, caso o trabalhador demonstre, por exemplo, que está
desempregado e sofrendo as consequências financeiras da pandemia e do
isolamento social.
Assim,
na pandemia da Covid-19, o trabalhador não acometido por doença grave deverá
demonstrar que se encontra em situação de vulnerabilidade social e que o valor
de R$1.045,00 será insuficiente para o sustento próprio e da sua família.
O fato
do trabalhador pertencer ao grupo de risco do coronavírus, estar desempregado
ou com contrato de trabalho suspenso, além de outros fatores pessoais, são
agravantes que podem ser levados em consideração pelo Judiciário.
Ora, se o FGTS pode ser usado para a aquisição
de imóvel, construção, liquidação ou amortização de dívidas bancárias vinculadas
aos contratos de financiamento habitacional, por qual motivo não poderia ser
utilizado para sua sobrevivência e de sua família durante a pandemia?
Necessário lembrar que os veículos de
comunicação apontam que o Brasil entrará na pior crise econômica e sanitária
desde a gripe espanhola e do número crescente de casos de infecção e morte de
pessoas que não puderem permanecer em isolamento social, pois tiveram que ir às
ruas para garantir seu sustento.
CONCLUSÃO
E COMENTÁRIOS FINAIS
Em suma, não obstante a MP nº 946/2020 tenha
limitado o saque até a importância de R$1.045,00, entendemos que esse valor se
aplica apenas ao trabalhador não afetado ou pouco afetado pela pandemia.
Já o
trabalhador que teve a sua situação familiar e econômica afetada pela calamidade
pública e esteja em situação de vulnerabilidade, poderá soerguer o valor
integral da conta ou pelo menos o valor de R$6.220,00, conforme o artigo 4 do Decreto
nº 5.113/2004 que regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei do FGTS.
Entendo ainda que o prazo de 90 dias para
solicitar o saque do FGTS previsto no parágrafo terceiro do artigo 1º do Decreto
nº 5.113/2004 não se aplicaria ao coronavírus, uma vez que a pandemia se renova
dia após dia e mantém o estado de calamidade indefinidamente, não se confundindo com uma tempestade, alagamento, inundação ou outro evento súbito da natureza
(art. 2º). Em outras palavras, o trabalhador poderá solicitar o saque do FGTS por
meio de ação judicial mesmo após 90 dias da decretação do estado de calamidade
pública.
São Paulo, 04 de junho de 2020
Edgar Yuji Ieiri
[i] ADI 4.049-MC, Rel.
Min. Carlos Britto, j. 05.11.2008
[iii] Jorge
Neto, Francisco Ferreira Direito do trabalho / Francisco Ferreira Jorge Neto,
Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante. – 9. ed. – São Paulo: Atlas, 2019., p.
1.133
[v] MANDADO
DE SEGURANÇA. REMESSA OFICIAL. SALDO FGTS. LEVANTAMENTO. DOENÇA GRAVE NÃO
PREVISTA NA LEI 8.036/90. ROL EXEMPLIFICATIVO. Nos termos do artigo 20, da Lei
8.036/90, dentre as hipóteses previstas para levantamento do saldo da conta
vinculada do trabalhador no FGTS, encontra-se o acometimento de doenças graves
ao titular da conta ou a dependente seu, restringido-se aos casos de neoplasia
maligna (inc. XI), portador do vírus HIV (inc. XIII) e de estágio terminal em
razão de doença grave (inc. XIV). Em que pese a "esclerose múltipla (CID
nº 10-G35" não se encontrar no elenco de doenças graves do artigo 20, o E.
STJ e esta Corte possuem entendimento consolidado de que o rol é meramente
exemplificativo, e não taxativo, podendo albergar outras patologias que não
estejam expressamente nele previstas. (TRF-4 - REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL:
50001242020184047209 SC 5000124-20.2018.4.04.7209, Relator: VÂNIA HACK DE
ALMEIDA, Data de Julgamento: 18/09/2018, TERCEIRA TURMA)
[vii] ADMINISTRATIVO. FGTS. LEVANTAMENTO DO
SALDO DA CONTA VINCULADA. DOENÇA GRAVE. ART. 20 DA LEI Nº 8.036/90.
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. - Sentença que se mantém para liberar os valores
depositados na conta vinculada do fundista cujo filho acha-se acometido de
doença degenerativa, de caráter irreversível - Distrofia de Ducheinne, pois
embora não se enquadre a moléstia expressamente no art. 20, da Lei nº 8.036/90,
justifica-se a interpretação extensiva da norma, eis que a finalidade social do
FGTS não pode ser desprezada no presente caso. (RESP - RECURSO ESPECIAL -
671795 2004.01.07003-9, LUIZ FUX, STJ - PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:21/03/2005)
ADMINISTRATIVO.
CONSTITUCIONAL. FGTS. SAQUE PARA TRATAMENTO DE DOENÇA GRAVE DE DEPENDENTE.
POSSIBILIDADE. LEI N. 8.036/90, ART. 20. ROL NÃO EXAUSTIVO. ENTENDIMENTO DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRECEDENTES. SENTENÇA REFORMADA I - A discussão
instaurada nos autos trata da possibilidade de liberação de valores depositados
na conta vinculada ao FGTS do autor, em razão da necessidade de custeio de
tratamento de saúde de seu filho. O pedido foi julgado improcedente ao
fundamento de que não foram demonstrados os requisitos para liberação do saldo
fundiário do promovente. II - A despeito do entendimento adotado pelo juízo
singular, o Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que "a
enumeração do art. 20, da Lei 8.036/90, não é taxativa, admitindo-se, em casos
excepcionais, o deferimento da liberação dos saldos do FGTS em situação não
elencada no mencionado preceito legal" (REsp 848.637/PR, Rel. Ministro
Luiz Fux, 1ª Turma, DJ de 27/11/2006).
CIVIL.
CIVIL. APELAÇÃO. AUTORIZAÇÃO PARA SAQUE DE VALORES DEPOSITADOS EM CONTA
VINCULADA AO FGTS. TRATAMENTO DE SAÚDE DO CORRENTISTA. ROL DA LEI 8.036/90: NÃO
TAXATIVO. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Apelação interposta pelo autor contra sentença
que julgou improcedente o pedido de levantamento de valores depositados na sua
conta do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS, por ser portador de
glaucoma em ambos os olhos e possuir membrana epirretiniana, doença grave, nos
termos do art. 487, I, CPC. Condenada a parte autora ao pagamento de custas e
de honorários advocatícios de 10% sobre o valor da causa, observada a gratuidade
de justiça. 2. A permissão para o levantamento de dinheiro depositado em conta
corrente vinculada ao FGTS é consagrada para além das hipóteses legais
previstas na Lei nº 8.036/90. 3. A jurisprudência dos nossos Tribunais é firme
no sentido de que as disposições da Lei nº 8.036/90 (art. 20) apresentam-se em
rol não taxativo, devendo-se atentar para peculiaridades do caso concreto que
espelhem situação fática de necessidade, a ensejar autorização para o saque dos
valores depositados, especialmente em hipóteses de prestação de assistência
médica e tratamento de saúde do correntista e também de dependentes. 4. A
condição de saúde ocular do apelante é incontroversa quanto a ser ele portador
de glaucoma em ambos os olhos, doença que demanda tratamento e acompanhamento
constante, bem como quanto a ostentar membrana epirretiniana no olho esquerdo.
5. Apelação provida. (ApCiv 5000249-11.2018.4.03.6111, Desembargador Federal
HELIO EGYDIO DE MATOS NOGUEIRA, TRF3 - 1ª Turma, e - DJF3 Judicial 1 DATA:
13/06/2019.)