segunda-feira, 1 de junho de 2020

O banco de horas “negativo” no período de pandemia. Isso pode?





É fato que a pandemia provocada pela Covid-19 fará a economia encolher no Brasil e no mundo. Nos meios de comunicação, analistas vêm afirmando que a o país sofrerá a pior crise social das últimas décadas com a elevação do desemprego e dos índices de pobreza.

Como forma de gerar menos impacto, o Governo Federal editou a Medida Provisória 927 em março de 2020, a qual dispõe de medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública e que se aplicam especialmente nas empresas consideradas não essenciais e que estão impedidas de funcionar.

Já tratamos aqui no nosso Blog das férias individuais e coletivas no período de pandemia e agora vamos tratar do BANCO DE HORAS como ferramenta para preservação do emprego e da renda dos trabalhadores.

Também já falamos sobre a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário e da suspensão do contrato de trabalho mediante o recebimento do Benefício Emergencial.


A IMPLANTAÇÃO DO BANCO DE HORAS APÓS A REFORMA TRABALHISTA

Grosso modo, o chamado banco de horas é um sistema de flexibilização da jornada de trabalho, pelo qual se permite a compensação do excesso de horas trabalhadas em um dia pela diminuição da carga horária de outro dia, não necessariamente na mesma semana.

Caso o empregado extrapole a jornada legal ou contratual, o valor das horas extras não será pago no holerite do mês, mas pode ficar acumulado em um “banco” aguardando a devida compensação através de folgas adicionais ou saídas antecipadas.

O limite máximo da jornada diária continua a ser de 10 horas mesmo após a Reforma.

Segundo o Art. 59 da CLT[i], após a Reforma Trabalhista, a duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.

Pela Reforma Trabalhista, caso o banco de horas seja implantado por meio de acordo ou convenção coletiva a compensação das horas extras pode ocorrer no período de um ano (parágrafo segundo do art. 59 da CLT).

Caso o banco de horas seja implementado através de acordo individual escrito, a compensação das horas extras deve ocorrer no período máximo de seis meses (parágrafo quinto do art. 59 da CLT).

E caso o banco de horas seja implementado verbal ou tácita, a compensação das horas extras deve ocorrer no mesmo mês (parágrafo sexto do art. 59 da CLT).

Nesse ponto, não se pode olvidar que segundo o inciso XIII, art. 7º, Constituição Federal[ii], a compensação ou redução da jornada somente é válida mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. E por haver debate sobre a constitucionalidade da Reforma Trabalhista no que se refere ao banco de horas, nos parece precipitada a afirmação de que é possível a implantação do Banco de Horas sem qualquer intervenção do sindicato da categoria profissional.

Mesmo após a Reforma Trabalhista recomendamos que o empregador somente implante, de forma individual e por escrito, o sistema compensação semanal, com a previsão de horários e dias pré-determinados para a distribuição do número de horas na semana, com a observância de que a jornada diária não fosse superior a 10 horas. (por exemplo: o trabalhador não trabalha aos sábados e compensa as quatro horas durante os dias “úteis”, de segunda a sexta-feira).

Isso porque o TST vem admitindo a compensação de horas extras dentro da mesma semana através de acordo individual escrito (Súmula 85, inciso I do TST[iii]) e caso a compensação ocorra fora da mesma semana, como na “semana espanhola”, que alterna a prestação de 48 horas em uma semana e 40 horas em outra, será necessário o seu ajuste mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho (OJ 323, SDI-I[iv]).

Quando a compensação se der pela sistemática do “banco de horas”, sem dias previamente definidos e/ou em períodos superiores a uma semana, as empresas devem seguir o regulamento dos acordos e das convenções coletivas.


O BANCO DE HORAS NO PERÍODO DE PANDEMIA

Segundo a CLT, havendo a rescisão do contrato de trabalho, eventuais horas positivas podem ser liquidadas do cálculo da rescisão e serão calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão (parágrafo terceiro do art. 59 da CLT).

No entanto, mesmo após a Reforma Trabalhista, a CLT não previu e não regulamentou a implantação um “banco de horas negativo”.

O excesso de horas em um dia pode ser compensado pela correspondente diminuição em outro dia, mas o contrário não era possível, ou seja, as horas negativas não podiam ser descontadas na mesma sistemática das horas positivas, pois devem ser descontadas no mesmo mês como faltas ou atrasos do trabalhador.

Ocorre que a MP 927 possibilitou que durante o estado de calamidade pública, no período de pandemia, “ficam autorizadas a interrupção das atividades pelo empregador e a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, em favor do empregador ou do empregado, estabelecido por meio de acordo coletivo ou individual formal, para a compensação no prazo de até dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública” (art. 14).

Entretanto, em que pese o teor da MP 927, entendemos que a implantação do sistema de banco de horas (positivo ou negativo), mesmo no período de pandemia, não se pode dar por meio de acordo individual, por violar o inciso XIII, art. 7º, Constituição Federal.

Não obstante, é juridicamente viável que a empresa busque a formalização de um acordo coletivo junto à entidade sindical prevendo a paralisação de suas atividades em razão da pandemia. Por meio deste acordo, o período em que o trabalhador permanecer em casa (em quarentena remunerada) seria lançado em um “banco de horas negativo” para posterior compensação através de horas extras.

Essa medida evitaria o desligamento do trabalhador ou a suspensão do contrato de trabalho nas formas da MP 936.

Ao mesmo tempo, não haveria enriquecimento sem causa por parte do empregado, já que quando a rotina da empresa voltar ao normal, dentro do prazo de dezoito meses do encerramento do estado de calamidade pública, o trabalhador se compromete a realizar horas extras para repor o período em que permaneceu em casa, em isolamento social.
 
 
O BANCO DE HORAS NEGATIVO PODE SER DESCONTADO DA RESCISÃO OU DOS SALÁRIOS FUTUROS?

Mesmo se houver previsão em acordo coletivo ou convenção coletiva, entendemos que o empregador não está autorizado a descontar o banco de horas negativo das verbas rescisórias e dos salários futuros, mesmo no período de pandemia.

Isso porque a Constituição Federal somente autoriza a compensação de horários, com aumento e diminuição da jornada. Em nenhum momento a Constituição Federal autoriza a compensação do banco de horas negativo dos salários ou da rescisão do empregado. Em outras palavras, o banco de horas negativo poderia ser compensado das futuras horas extras que o trabalhador fizer, mas não pode ser deduzido no valor das verbas rescisórias.

Defender o contrário seria equivalente a transmitir o risco da atividade econômica ao trabalhador, o que é defeso por consistir em violação do princípio da alteridade previsto no art. 2º da CLT.

A MP 927 também não permitiu o desconto do banco de horas negativo das verbas rescisórias ou dos salários futuros. O parágrafo primeiro do art. 14 claramente regulamentou que: "a compensação de tempo para recuperação do período interrompido poderá ser feita mediante prorrogação de jornada em até duas horas, que não poderá exceder dez horas diárias". Em suma, o banco de noras negativo poderá ser usado somente se o trabalhador fizer horas extras futuramente.

Ora, se a Constituição Federal e a MP 927 não autorizam a dedução do banco de horas negativo das verbas rescisórias, a convenção coletiva ou o acordo coletivo não podem dizer o contrário, mesmo considerando a atual redação dos artigos 611-A e 611-B da CLT. 
 
Não se ignora a nova tendência trazida pela promulgação da Reforma Trabalhista de que "prevalece o negociado sobre o legislado". Ocorre que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho, embora possam se sobrepor à lei quando dispuserem sobre a jornada de trabalho, devem observar os "limites constitucionais" (Art. 611-A, inciso I da CLT).

Pode-se dizer, portanto, que a cláusula normativa que autoriza o desconto do banco de horas negativo da rescisão ou dos salários futuros é inconstitucional e também não encontra respaldo na MP 927 ou da CLT, mesmo após a Reforma Trabalhista. Portanto, a empresa poderia deixar de pagar pelas horas extras que o trabalhador eventualmente fizer até a compensação total do banco de horas negativo, mas não pode descontar o banco de horas negativo do salário padrão ou da rescisão do trabalhador.

Na prática, caso fosse juridicamente possível abater o banco de horas negativo das verbas rescisórias, nenhum empregador ajustaria a suspensão o contrato de trabalho (Lei nº 14.020/2020) mediante o pagamento da AJUDA COMPENSATÓRIA de 30% (trinta por cento) do valor do salário do empregado, uma vez que seria muito mais vantajoso pagar os salários para o empregado permanecer em casa e depois descontar da rescisão futura.

Importante ainda mencionar que a MP 927, que previu o banco de horas negativo, teve seu prazo de vigência encerrado no dia 19 de julho de 2020. Portanto, após tal data, nenhum empregador estaria autorizado a manter o banco de horas negativo, porquanto a CF e a CLT não permitem esse procedimento de compensação.

Sabemos que o assunto é novo e polêmico, mas mesmo entre aqueles que defendem a possibilidade do desconto do banco de horas negativo da rescisão há que se cumprir a limitação contida no art. 477, § 5º da CLT: qualquer compensação no pagamento das verbas rescisórias não poderá exceder o equivalente a um mês de remuneração do empregado.
 
Além disso, a compensação deve envolver parcelas de mesma natureza, de modo que o banco de horas negativo só poderia ser compensado (em tese) do saldo de salário, mas nunca do 13º salário, das férias, do aviso prévio ou de multas rescisórias.





[i] Art. 59.  A duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.
§ 1o  A remuneração da hora extra será, pelo menos, 50% (cinquenta por cento) superior à da hora normal.
§ 2o  Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.
§ 3º  Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho sem que tenha havido a compensação integral da jornada extraordinária, na forma dos §§ 2o e 5o deste artigo, o trabalhador terá direito ao pagamento das horas extras não compensadas, calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão.
§ 5º  O banco de horas de que trata o § 2o deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses.
§ 6o  É lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês.

[ii] CF, art. 7, XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;
 
[iii] Súmula nº 85 do TST COMPENSAÇÃO DE JORNADA
I. A compensação de jornada de trabalho deve ser ajustada por acordo individual escrito, acordo coletivo ou convenção coletiva. (ex-Súmula nº 85 - primeira parte - alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

[iv] 323. ACORDO DE COMPENSAÇÃO DE JORNADA. "SEMANA ESPANHOLA". VALIDADE
É válido o sistema de compensação de horário quando a jornada adotada é a denominada "semana espanhola", que alterna a prestação de 48 horas em uma semana e 40 horas em outra, não violando os arts. 59, § 2º, da CLT e 7º, XIII, da CF/88 o seu ajuste mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.